Repercussão Artística da Condição Humana

Luiz Nazario (O Espírito do Tempo – Quadro Histórico do Período Naturalista)

O século XIX foi o século das massas e das grandes invenções da vida prática. O século dos modernos meios de comunicação – os primeiros telegramas, linotipos, rotativas, telefones, gramofones, cinematógrafos. O século dos modernos meios de transporte – os primeiros elevadores, automóveis, balões dirigíveis, aviões, submarinos, ferrovias continentais e  intercontinentais. E o século da eletricidade – da luz elétrica, do trem elétrico, do balão elétrico (dirigível), do bonde elétrico, do fogão elétrico, do forno elétrico, da cadeira elétrica. Todos os Estados europeus foram se alinhando à evolução geral da democracia burguesa, e uma sucessão frenética de invenções reformatou a vida humana: máquinas agrícolas plantavam e colhiam, reduzindo a mão de obra; ferrovias substituíam as estradas de terra; os primeiros automóveis começaram a aposentar as carruagens; dirigíveis cruzavam os céus antecipando os futuros aviões; a eletricidade substituía a iluminação a gás e permitia o desenvolvimento do telégrafo, do telefone, do cinema, dando velocidade aos acontecimentos, relatados por jornalistas em máquinas de escrever e gravados
nos diários por rotativas que imprimiam 96 mil folhas de papel-jornal por hora. Os impérios coloniais sedimentaram-se e o expansionismo europeu atingiu o auge, levando a riqueza espoliada das colônias às capitais metropolitanas, que se expandiram como nunca. Com a rápida urbanização, cresceram as favelas ao redor dos bairros de luxo, assim como a multidão de ladrões que assaltavam os incautos à noite. A prostituição, o alcoolismo e os crimes de sangue passaram a inspirar artistas, poetas e escritores, enquanto os cientistas sociais, subestimando a cultura, que os formava desde o berço, procuravam as causas de todos os vícios na biologia do homem. O progresso furioso gerava as angústias que Nikolai Gógol (1809-1852) captou já na Rússia tsarista através das fantasias de “Nos” (O Nariz, 1836) e “Schinel” (O Capote, 1842), e que fez nascer o romance policial, nas colunas da Graham’s Magazine, com a publicação de “The Murders in the Rue Morgue” (Os Crimes na Rua Morgue, 1841), “The Mistery of Marie Roget” (O Mistério de Maria Roget, 1842-1843) e “The Purloined Letter” (A Carta Roubada, 1845), de Edgar Allan Poe. Mas o progresso também despertava o entusiasmo de antropólogos e linguistas europeus. Pesquisando a origem das línguas e dos povos, cientistas e amadores, jornalistas e militantes estabeleceram, por diferentes critérios, todos arbitrários e subjetivos, a superioridade da “raça indo-europeia” sobre as demais “raças” humanas. Cruzando seus estudos, identificavam grupos étnicos e condicionavam o comportamento às características biológicas de cada um deles, como se os valores culturais fossem transmitidos pelo sangue e a “lei da hereditariedade” dominasse as vontades conscientes do homem. As novas pesquisas serviam ao neocolonialismo, que mascarava interesses materiais na “missão” de civilizar povos “inferiores”. Nesses  estudos, também às classes sociais, definidas como “inferiores”, eram atribuídos a “vícios congênitos”. Ao mesmo tempo, os socialistas, que acreditavam viver o começo do fim da burguesia, passaram a considerar os trabalhadores como classe revolucionária, contestando o caráter congênito daqueles vícios, que preferiam atribuir ao “capitalismo”. Mas, sob a influência das teorias antropológicas contestadas, alguns socialistas, como Charles Fourier (1772-1837), passaram a associar aquele odiado sistema econômico às “raças semitas”, aliando o socialismo ao racismo. A sociedade francesa do período foi radiografada por Honoré de Balzac (1799-1850) em 95 obras escritas com a ajuda de litros de café – e ele ainda deixou 48 livros inconclusos ao morrer, esgotado de tanto escrever sob pressão, vitimado por um enfarte, depois de batizar seu impressionante conjunto de escritos encomendados, publicados sob a forma de folhetins, de La Comédie humaine (A Comédia  Humana, 1829-1846). O realismo era a tônica de Physiologie du mariage (Fisiologia do Casamento, 1829), Eugénie Grandet (Eugênia Grandet, 1833), Le Père Goriot (O Pai Goriot, 1835), La Femme de trente ans (A Mulher de Trinta Anos, 1829-1842), Illusions perdues (Ilusões Perdidas, 1843), Pathologie de la vie sociale (Misérias da Vida Social, 1846) ou Splendeurs et misères des courtisanes (Esplendores e Misérias das Cortesãs, 1849), entre os mais famosos.

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Os naturalistas acreditavam que o indivíduo era um produto do meio e da hereditariedade e  que o comportamento humano era determinado pela biologia e pelas engrenagens da sociedade. Impactados pelo positivismo de Auguste Comte (1798-1857) e de Taine, que postulava ser possível compreender o homem à luz de três fatores determinantes: o momento histórico, a raça e o meio ambiente, devendo os fenômenos sociais ser percebidos como fenômenos da natureza, pois também obedeceriam a leis gerais, imaginavam que a teoria da seleção natural de Darwin valeria também na sociedade. Predominava, assim, na literatura naturalista, o instintivo e o fisiológico, as pulsões agressivas e violentas, um  erotismo decadente e mórbido, com a exploração da homossexualidade, do lesbianismo, do incesto, da loucura hereditária, em personagens dominados por suas paixões e cuja vontade consciente mostrava-se incapaz de subjugar a “natureza animal” do homem.  Na árvore genealógica das personagens do ciclo de Zola, cada membro da família possuía um resumo cronológico de sua vida, com sua profissão e suas “tendências hereditárias”, numa conceituação baseada nas teorias do doutor Bernard. Nessa árvore, a personagem Jacques Lantier, de La Bête humaine, por exemplo, “herdara” o alcoolismo e a loucura homicida do pai; o segundo amante de Gervaise, Coupeau, descendia de uma “família alcoólatra”, pelo que a filha do casal morreria miserável num coma alcoólico devido à “eleição paterna” (semelhança exclusiva com o pai) e ao fato de ter sido “concebida na embriaguez”. Os críticos de Zola ridicularizaram essa árvore genealógica tão viciosa: mesmo seu amigo Alphonse Daudet teria dito que se possuísse uma árvore assim teria se enforcado no galho mais alto dela. Os adeptos do naturalismo tentavam demonstrar, com suas representações, que o indivíduo seria moldado pelo ambiente em que nascera com a contribuição das “leis de hereditariedade”, apontadas pelos cientistas como causa secreta da maior parte dos males sociais do mundo adoentado. Sob a influência da nascente psicanálise de Sigmund Freud (1856-1939), a literatura naturalista passou a abordar cada vez mais abertamente a  sexualidade humana, abusando da linguagem vulgar e falada, com diálogos crus que 640px-zola_1902bescandalizavam os leitores da época. Esse mundo que se industrializava e se urbanizava rapidamente, destruindo tanto as antigas paisagens naturais quanto as estruturas sociais seculares, trazendo problemas inúmeros e sem solução, encontrou na literatura naturalista uma explicação chocante, mas satisfatória pela simplificação. Ainda em 1893, veio à luz na Inglaterra um pioneiro romance homossexual pornográfico: Teleny, que teria sido escrito a várias mãos pelo círculo de amigos de Oscar Wilde, suposto autor do primeiro capítulo, de sugestões para os demais episódios e da forma final do texto. Ao mesmo tempo, foi fundado o Partido Trabalhista Independente, que originaria o Partido Trabalhista. Na Alemanha, Diesel inventou o motor de combustão interna com ignição por compressão, e Hauptmann lançou a comédia Der Biberpelz (A Pele de Castor) e o drama Hanneles himmelfart (A Ascensão da Joaninha). Nos Estados Unidos, Edison completou a construção do primeiro estúdio cinematográfico, chamado de Black Maria, em West Orange, Nova Jersey. Na Índia, Mahatma Gandhi (1869-1948) realizou o primeiro ato de desobediência civil contra o domínio colonial da Inglaterra, idealizando a criação do Estado indiano independente.

Na França, em 1894, o médico e bacteriologista franco- suíço Alexandre Yersin  (1863-1943) descobriu o bacilo da peste bubônica. Dentro do Exército, descobriu-se uma carta – que logo “deduziram” ter sido escrita pelo capitão de origem judaica Alfred Dreyfus (1859-1935), delatando segredos militares do país à Alemanha. Preso e degradado em cerimônia militar, Dreyfus foi condenado, por “traição à pátria”, à prisão perpétua e deportado para a Ilha do Diabo, nas Guianas Francesas. No entanto, o tenente-coronel Georges Picquart, ao assumir o Departamento de Contraespionagem, interceptou uma carta do major Charles-Ferdinand Walsin Esterhazy à Alemanha e descobriu que a letra dessa carta era a mesma daquela cuja autoria haviam atribuído a Dreyfus. O oficial francês de origem húngara vendia os segredos militares à Alemanha para pagar suas grandes dívidas de jogo. Ele revela suas descobertas aos superiores. Esterhazy foi absolvido em 1898, por uma manobra do Exército francês que sacrificou Dreyfus em nome da manutenção da “boa imagem” da instituição. Inconformado, Zola passou 24 horas fechado em seu escritório, de lá saindo com uma carta aberta ao presidente da República, propugnando a culpa de Esterhazy, a inocência de Dreyfus, a conspiração dos generais. Publicada no recém-criado L’Aurore, de Paris, já que nenhum outro órgão de imprensa o aceitou, o texto intitulado “J’Accuse…!” (Eu Acuso…!), mais que todos os seus romances, fez Zola entrar para a história.

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O escritor foi processado por difamação e a notícia abalou a opinião pública mundial. Nascia o conceito de “intelectual” – termo usado pela primeira vez, contudo, de forma pejorativa, voltado contra os dreyfusards. O escritor foi atacado pela turba e condenado pela Justiça. Para evitar ser preso, exilou-se em Londres por um ano. Dreyfus foi novamente condenado e preso em 1899. Durante o julgamento, as mais horripilantes fantasias de destruição dos judeus vieram à tona. Em toda a França ouvia-se o grito de “morte aos judeus!”, seguido de saques, destruição de lojas, violação de mulheres e assassínios. Na Inglaterra, Rudyard Kipling publicou o poema The White Man’s Burden (O Fardo do Homem Branco) abordando a conquista das Filipinas e outras ex-colônias espanholas pelos Estados Unidos; o “fardo do homem branco” seria o imperialismo, que ele considerava um nobre empreendimento a civilizar povos “inferiores”.

(…) Dois aspectos da interação entre arte e sociedade ao longo de todo o período aqui abarcado são emblemáticos dos processos em curso. O primeiro é a representação do feminino, principalmente na literatura. Passou-se do romantismo e suas heroínas exaltadas e idealizadas, demônio ou musa intocável, para uma “naturalização” da mulher no naturalismo, não apenas no plano erótico, e finalmente a uma visão nuançada e psicologicamente mais complexa, concomitante à própria evolução do papel da mulher na sociedade, bem como em relação aos seus direitos sociopolíticos e à luta contra a posição subalterna até então vigente, inclusive – e principalmente – dentro do próprio lar. Da figura romântica da sra. Rênal a Emma Bovary. O segundo, decorrente da subversão das tradições estéticas, foi a visão da arte moderna e de vanguarda como “decadência”, que atingiu seu auge quando o nascente nazismo começou a impor sua ditadura, exterminando territorial ou fisicamente todos os “decadentes”. E é um fenômeno notável que os nazistas adotarão, especialmente em seu cinema, a estética do naturalismo, adaptando autores como Zola, Flaubert, Maupassant, Hauptmann e Tolstói, e utilizando tramas carregadas de morbidez e personagens com vícios atávicos, determinados pelas “leis da hereditariedade”, como exemplos justificativos da “necessidade” do Holocausto.

 



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Este volume da coleção Stylus, coordenado por J. Guinsburg e João Roberto Faria, propõe-se a rastrear, com destaque ao Brasil, as linhas de irradiação do movimento naturalista,

atravessando as fronteiras francesas para chegar ao Brasil com olhos de ambição, percorrendo, não só o âmbito das letras e da crítica, mas de todas as artes. Numa síntese que reúne especialistas das várias áreas do pensamento e das artes, tais como Luiz Nazario, Newton Cunha, Leda Tenória da Motta, Helmut Galle e Sandra Guardini Vasconcelos, compõe-se um panorama, não só da época e de seus embates, como do sentido desses movimentos, a seu modo inquestionavelmente estético, que se propunham a captar o espírito e as realidades da condição humana.

Dando continuidade à proposta da coleção que reúne títulos como O Modernismo, O Surrealismo e Estudos Sobre o Barroco, este volume pretende trazer um panorama das artes e suas relações com o movimento surgido nas últimas três décadas do século XIX. Através de uma cronologia estrita e a atenção devota ao espírito de época marcado pelo positivismo e cientificismo, O Naturalismo volta-se com maior recorrência à literatura, onde é mais característico, com Émile Zola na linha de frente e suas obras como referências à expansão de propostas e aforismos estéticos.



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J. GUINSBURG
Professor de Estética Teatral e Teoria do Teatro da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e editor. Autor, entre outros, de Stanislávski e o Teatro de Arte de Moscou; Leoni de’ Sommi: Um Judeu no Teatro da Renascença Italiana; Aventuras de uma Língua Errante; Stanislávski, Meierhold e Cia.; Da Cena em Cena. Tradutor de Diderot, Lessing, Nietzsche, Spinoza e Platão.

 


Resultado de imagem para joão roberto fariaJOÃO ROBERTO FARIA
Professor titular de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo e pesquisador do CNPq. Coordenador da coleção Dramaturgos do Brasil (Martins Fontes), para a qual preparou os volumes Teatro de Álvares de Azevedo (2002), Teatro de Aluísio Azevedo e Emílio Rouède (2002), entre outros. É autor de O Teatro Realista no Brasil: 1855-1865 (Perspectiva/ Edusp, 1993) e Idéias Teatrais: o Século XIX no Brasil (Perspectiva/Fapesp, 2001, Prêmio APCA).


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