Presença de Pirandello no Brasil

Annateresa Fabris e Mariarosaria Fabris*

 

Embora seja um autor bastante estudado nos cursos de Literatura Italiana, Pirandello nunca foi objeto de uma análise sistemática que evidenciasse sua fortuna crítica no Brasil ou o possível diálogo de dramaturgos e escritores brasileiros com sua vasta produção. Quando muito, foi proposto um paralelo entre seu humorismo e a ironia de Machado de Assis, como atestam a introdução de Cândido Motta Filho a uma coletânea de novelas (1925) e a dissertação de Mestrado, “Pirandello e Machado de Assis: um Estudo Comparado” (1989), de Sérgio Mauro.Pirandello [T11].jpg

Esta apresentação, portanto, constitui um primeiro levantamento da presença do autor siciliano no Brasil. É no decorrer dos anos 20 que começa a manifestar-se entre nós o interesse pelo Pirandello novelista, concomitantemente com a divulgação de sua atividade dramática, levada adiante por companhias brasileiras e estrangeiras, na esteira do sucesso italiano e internacional. Em 1925, graças ao empenho de Antonio Tisi, dono da Livraria Italiana de São Paulo, são publicadas algumas das Novelle per un anno, sob o título de Novelas Escolhidas; esta edição constitui uma das primeiras traduções mundiais da novelística pirandelliana  Quanto ao teatro, a primeira montagem de uma peça de Pirandello da qual se tem notícia é de 1924: trata-se de Pois é isso… [Così è (se vi pare)], que a Companhia Brasileira de Comédias Jaime Costa apresentou na capital e nas cidades do interior do Estado de São Paulo. No ano seguinte, esse mesmo espetáculo é encenado pela Compagnie Dramatique Française de Victor Francen [Chacun sa vérité] e pela Compagnia Italiana Maria Melato-Annibale Petrone. Em 1927, a Compagnia del Teatro d’Arte di Roma, dirigida pelo próprio Pirandello, traz para São Paulo e Rio de Janeiro L’amica delle mogli, Come tu mi vuoi, Come prima, Meglio di prima, Seis Personagens à Procura de um Autor [Sei personaggi in cerca d’autore] e Henrique IV [Enrico IV]. Dois anos mais tarde, esta última peça voltará a ser proposta pela Compagnia Drammatica Italiana del Teatro d’Arte di Milano, com o mesmo Ruggero Ruggeri que, em 1922, havia determinado seu sucesso na Itália. Os aplausos que, naquele momento, o autor italiano colhia em todos os campos correspondem perfeitamente às expectativas de um escritor e crítico moderno como Oswald de Andrade, que o havia descoberto como dramaturgo em 1923, em Paris, cidade da qual parte o reconhecimento internacional de Pirandello. Num artigo publicado pelo Correio Paulistano, “Anunciação de Pirandello” (29 de junho de 1923), Oswald de Andrade analisa a montagem de Seis Personagens à Procura de um Autor na Comédie des Champs-Elysées. Se o título do artigo é epifânico, igualmente epifânica parece ser a visão que o escritor tem de Pirandello, legítimo herdeiro de Henrik Ibsen e Ernest Mazeaud:

A primeira impressão de quem entra para ver essa assustadora reforma cênica é que não há espetáculo. O teatro está aberto e nu. Pano levantado, bastidores de costas, mangueiras preparadas para um caso de incêndio, um piano, cartazes indicadores do horário dos artistas – toda a engrenagem anarquizada de uma caixa em dia de ensaio.

Quando começa a ação, o público e o crítico estão fascinados: um dos personagens incompletos

fala numa ânsia sugestiva, emocionado. Explica melhor, para o espanto crescente da banal assembléia de artistas: – a natureza prossegue, na imaginação, num plano superior, o seu trabalho de criação. O drama daquelas pessoas existe, existe em cada uma, precisa ser ordenado e levado a cabo. […] Porque, de um lado, é de fato a vida que fala, o assunto sangrento, lama e estrela, a febre da crua realidade, do outro, as  convenções bem-educadas que procuram dar um ritmo à matéria candente e apenas arrastam mais a sua ânsia de finalidade. Domina o quadro a duplicidade das grandes aglomerações atuais, onde uma complicação de consciência e de cerebralismo dá a nota central.

Tornando sua a ideia da “vida mental” de Simmel, Oswald de Andrade se inseria na grande corrente do pirandellismo, que terá êxito também no Brasil e não só naquele momento.

 

Visto como um intelectual da estatura de um Einstein, de um Freud e de um Uexkul, o Pirandello que Candido Motta Filho apresenta, na introdução de Novelas Escolhidas (1925), é o equivalente literário das grandes renovações da ciência moderna, por enfrentar um dos problemas cruciais da modernidade: a ilusão da aparência. Atento ao “fato psicológico do processus da personalidade e da fixação da consciência coordenadora”, Pirandello não deve ser considerado um pessimista. É antes um humorista, animado pelo “sentimento do contrário”, que o iguala a Swift, a Sterne, a France, a Proust e a Machado de Assis:

[…] põe diante do leitor o verso e o reverso, as duas faces do problema […], nas cenas mais comoventes, nas cenas mais sentimentais, surge um aspecto ridículo, um aspecto burlesco, um aspecto que cria uma situação de real e puro humorismo.

Um humor doloroso porque profundo e filosófico, centrado no “desperdício de personalidade” que nasce do confronto entre o homem e o mundo, daquele “erro antropocêntrico” que está na base da consciência moderna. Em sua obra-prima, O Falecido Matias Pascal [Il fu Mattia Pascal], que Motta Filho compara a Brand, de Ibsen, a Um Homem Acabado, de Papini e a O Fogo, de D’Annunzio, Pirandello explicita sua concepção de arte, baseada na autovisão, mas transformada em emoção estética:

[…] a realidade tumultuante e vertiginosa da vida exterior, o instante estético, o momento artístico emanado da consciência especializada do artista que tem o dom de ligar os fragmentos, de harmonizar os contrastes, de compor a unidade integral, de tecer a vida universal e eterna das grandes criações.

Um autor inumano, que desarticula o homem até transformá-lo em fragmentos, que se interessa só pelos estados de espírito é, ao contrário, a visão que Tristão de Ataíde tem de Pirandello em Estudos – 2ª Série (1928). A originalidade do escritor italiano reside justamente no fato de ter reduzido o homem a uma abstração, a uma série de peças de um mosaico que fazem perder de vista o organismo e com ele as noções de unidade, de fusão e de concatenação. O homem que surge a partir dessa concepção é complexo e trágico, assiste à própria desarticulação, mas não se resigna a ela. Ser que se sente abandonado, o homem de Pirandello

vê a contingência em todas as coisas, mas não se resigna à contingência. […] Vê a alegria maculada de dissolução, vê os ímpetos mais desinteressados em perpétua dilaceração recíproca, vê os homens fechados entre si, fechados em si mesmos, incompreendidos e incompreensíveis, vê tudo isso, vê todo esse abandono, e no entanto não pode mais entreabrir-se num sorriso de desprendimento e quando ri, é de esquecimento ou de sarcasmo.

Se existem limitações em Pirandello, elas devem ser buscadas na transformação de uma verdade parcial em verdade absoluta, no fato de ter elevado a sistema o relativismo psicológico, a negação da imanência e da transcendência, o gosto da aparência. Mas, ao mesmo tempo, Pirandello é para Tristão de Ataíde – que faz suas as palavras de Starkie – o arauto da falência do Super-homem, comparável nisso a Spengler, o profeta da decadência da Supercultura ocidental. Autor extremamente moderno, Pirandello não só testemunhou o estado de abandono no qual vive o homem do século XX. Fez mais: quebrando uma estrutura que parecia eterna, tornou os homens perplexos e desesperados, mas talvez “mais humanizados pela supressão de uma fé excessiva no ‘Homem’ ”, levando-os, quem sabe, mais para perto da Verdade.

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A idéia do homem-mosaico é retomada por Oscar Mendes no livro Papini, Pirandello e Outros, publicado em 1941. Comparado a um desenho cubista por seu aspecto facetado, o homem pirandelliano proposto por Mendes corresponde plenamente ao pirandellismo com seu ver-se viver, com seu oscilar entre pessoa e personagem, com a desproporção que existe entre sua natureza medíocre e tímida e as situações difíceis que tem que enfrentar. Igualmente derivada do pirandellismo é a tipificação que Mendes faz da poética do autor, em cuja complexidade estaria o porquê de sua rarefeita presença no panorama cultural brasileiro:

A sua arte estranha, seca, misteriosa e surpreendente, oscilante entre o trágico e o grotesco, quando não hibridamente misturando-os, o seu inóspito cerebralismo, a sua dúvida ansiosa, o seu hamletismo desorientador e dessorante, tudo conspira para afastar do escritor siciliano a média do público ledor.

Querendo negar o pirandellismo, que concebe como uma filosofia primitiva e nada original, baseada na dúvida e no ceticismo, Cláudio de Souza acaba, porém, por confirmá-lo, graças a uma série de categorias que constituem o leitmotiv de Pirandello e seu Teatro (1946). Raisonneur risonho, o escritor siciliano distingue-se pela adesão a uma prosa filosófica, pela tendência a fazer das próprias obras a demonstração de  uma tese, o palco no qual se explicitam os discursos da razão. Disso derivam a falta de verossimilhança e de humanidade de seus escritos, seu ambiente “quase sempre metafísico, abstrato, ideológico, ou simbólico”. O teatro de Pirandello se encaixa totalmente numa fórmula que Cláudio de Souza retoma da interpretação mais corrente sobre o escritor siciliano:

O drama é todo da razão. Sobe do instinto e do coração para o cérebro, do choque sentimental para a elaboração da inteligência, da linguagem do preconceito para o diálogo conceituoso. […] É ele mesmo como ragionatore o personagem central de suas peças. […] Em todo o teatro pirandelliano o que se nota é sempre a tendência verbalista, filha da dúvida, e também, ou principalmente, do pavor do obstáculo, do medo da luta, que, pregando a submissão sem combate às leis do destino, e compreendendo quanto esta atitude passiva é censurável, se esvai em uma polêmica ininterrupta, em uma controvérsia sem fim para, com auxílio de paradoxos e inversões especiosas, justificar a própria inércia, a inata abulia.

Num livro de divulgação, Todo o Teatro de Pirandello (Narrado, Comparado e Explicado ao Povo), datado de 1956, o jornalista Carlo Prina analisa vinte e três comédias do escritor, que procura salvaguardar do pirandellismo graças à ideia reiterada da humanidade de seus personagens, “mesmo quando parecem esquisitos ou grotescos, com seus sofismas e seus paradoxos, que os obrigam a grande tensão espiritual, aparecendo, à primeira vista, arbitrários, estrambóticos, ilógicos, e mesmo loucos”.

Embora destaque esse fundo humanista de Pirandello, Prina não deixa de referir-se ao pessimismo do escritor – que atribui à estada na Alemanha e à conturbada experiência matrimonial –, recuperando-o e atenuando-o, porém, ao subordiná-lo enfim “a necessidades artísticas e às visões de sua fantasia prodigiosa na procura do inédito”. Depurada da acusação de cerebralismo, a poética de Pirandello resume-se, para o autor, em dois elementos básicos: “sentir o Homem como força, e fustigar a sociedade e as incongruências da lei como Organização”.

Em seguida, Prina – retomando o argumento clássico de Tilgher sobre o dualismo da Vida e da Forma – destaca dois momentos na obra pirandelliana: o primeiro, caracterizado por um estilo duro, áspero, preciso, no qual os personagens são “vidas fixadas na forma”; o segundo, em que os personagens vivem de sensações, o que permite ao escritor evadir-se da prisão da matéria.

A negação do pirandellismo é também a proposta de Sábato Magaldi que, em 1964, faz da análise de Vestir os Nus [Vestire gli ignudi] o pretexto para repensar a obra do autor siciliano. Magaldi, que quatro anos antes havia se referido a um Pirandello popular, localizável em comédias como O Jarro [La giara] e O Homem, a Besta e a Virtude [L’uomo, la bestia e la virtù], concentra na tragédia de Ersilia Drei todas as qualidades criativas do autor – revelação das traições, da fragilidade dos sentimentos, do jogo inútil da culpa e da certeza, da falta de horizontes, do desespero como estigma – e as iguala às da literatura moderna, interessada nos aspectos mais dolorosos da condição humana. Precursora da expressão do absurdo contemporâneo, Vestir os Nus é comparada a Entre Quatro Paredes, de Sartre. Em ambas, a ação é determinada por um fato irremediável: mas, enquanto a visão de Pirandello é pessimista, o filósofo francês propõe a possibilidade da livre escolha em determinadas circunstâncias.

Igualmente negadora do pirandellismo é a diretriz de outro ensaio, O Cenário no Avesso (Gide e Pirandello), que o mesmo Magaldi dedica ao dramaturgo em 1977. Contrapondo-se à idéia cristalizada de um autor que deixa de lado a ação para dar lugar às idéias, Magaldi define o teatro pirandelliano como um misto de paixão e razão, justificando sua tese com vários exemplos extraídos de Seis Personagens à Procura de um Autor [Sei personaggi in cerca d’autore], Cada Um a seu Modo [Ciascuno a Suo Modo], Esta Noite se Representa de Improviso [Questa sera si recita a soggetto] e Os Gigantes da Montanha [I giganti della montagna].

Se, num primeiro momento, Pirandello era levado pelo sentimento da incomunicabilidade, motivo pelo qual via o teatro um equívoco e no intérprete um deturpador do texto literário, com o passar dos anos e, sobretudo, depois do encontro com Marta Abba, dá importância ao papel do ator, no qual detecta um exercício de verdade, a capacidade de viver a ficção até as últimas conseqüências.

 

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Marta Abba

O teatro no teatro, leitmotiv da produção pirandelliana, é visto por Magaldi como estímulo à auto-reflexão na última obra do escritor, Os Gigantes da Montanha, na qual é explicitada uma concepção amarga do papel da arte e de suas relações com o público. Apesar disso, Pirandello parece distanciar-se do hermetismo anterior, no qual o homem era desmembrado, e entrevê, numa arte impregnada de vida e na recomposição do indivíduo, uma nova catequese poética.

Para Aurora Fornoni Bernardini, os temas centrais da poética pirandelliana devem ser procurados em sua formação burguesa. Os motivos da família, da força das convenções, do pudor dos sentimentos, da conduta feminina correta, contra os quais o escritor reagirá a exemplo de seus personagens, foram-lhe inculcados desde pequeno; transformados em matéria artística, serão o espelho de uma crise que Pirandello atribui ao homem do início do século XX.

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O conflito entre o eu e os outros, que desemboca na construção do personagem, é o ponto central dessa crise. É dela que Aurora Bernardini faz brotar a dramaturgia pirandelliana, centrada numa minuciosa pesquisa linguística, na concepção do humorismo como sentimento do contrário, numa visão do personagem como ponto de confluência entre forma e movimento expressivo, numa orquestração calibrada do fato cênico.

Personagem e pessoa, como Magaldi também havia assinalado, distinguem-se por uma densidade humana diferente: se o primeiro é unívoco, a segunda é variável e relativa. Nessa contraposição, inspirada em Claudio Vicentini (L’estetica di Pirandello, 1970), a autora encontra a “proposta ideal” da poética pirandelliana: uma síntese de humanismo e esteticismo, que deve ser procurada na idéia da arte como mundo superior e mais verdadeiro (acima da crise), como representação e expressão da condição crítica do homem.

Se esses são aspectos positivos da poética pirandelliana, Aurora Bernardini não deixa de focalizar o que considera seu ponto fraco – a conciliação política proposta no fim do roteiro cinematográfico de Acciaio, que destoaria do momento político –, passando por cima, porém, da relação do autor com o fascismo, a qual, sem dúvida, poderia esclarecer essa atitude.

Ao contrário da maior parte da crítica, não só brasileira, que, quase sempre, se debruçou sobre a obra dramática de Pirandello, Alfredo Bosi, em “Itinerario della narrativa pirandelliana”, propõe-se a delinear o que denomina o “itinerário ídeo-expressivo” do autor siciliano. Ao analisar várias novelas e os romances de Pirandello, Bosi estabelece quatro momentos em sua narrativa.

O primeiro é constituído pelas novelas “exemplares” e “campes tres” e pelos romances da juventude, A Excluída [L’esclusa] e Il turno. Se é verdade que neles ainda ressoam ecos veristas e regionalistas, aos poucos substituídos pelo psicologismo, também é verdade que alguns dos temas pirandellianos já estão presentes nesta primeira fase, principalmente o dissídio entre consciência e sociedade, expresso no mal-estar do homem contemporâneo – “ator involuntário de um papel no drama social” – que, ao intuir a própria solidão no meio daqueles que o rodeiam, acalenta um desejo de evasão (representado pelo suicídio, pela falsa morte, pela loucura, verdadeira ou não).

O segundo momento corresponde à maturidade expressiva do autor e vai de O Falecido Matias Pascal ao início da atividade teatral, nova forma artística, a qual, como sublinha Bosi, se revelará “mais adequada para radicalizar a problemática que vinha amadurecendo nas novelas e nos romances e, também, mais propícia para uma comunicação viva e imediata com o público”.

Em O Falecido Matias Pascal, com um fôlego narrativo muito mais amplo, voltam os motivos das primeiras novelas transformados no “amargo sentimento do exílio”, isto é, naquela constatação da “impossibilidade da evasão social absoluta”, constatação que não é aceitação, integração passiva, pois a aspiração à fuga, gerada pelo sentimento da solidão, não é superada. Ao contrário, este é o momento em que se impõe incisivamente na narrativa pirandelliana o desdobramento da personalidade, na trágica oposição entre viver e ver-se viver. Esse desdobramento do eu não só constituirá o grande tema de seu teatro de Pois é Isso… a Quando si è qualcuno, mas estará ainda presente em obras narrativas posteriores: em várias novelas e nos romances Suo marito, Cadernos de Serafino Gubbio Operador [Quaderni di Serafino Gubbio operatore], Uno, nessuno e centomila.

O humorismo, aquele “sentimento do contrário”, que nasce dessa cisão entre ser e parecer, já presente nos primeiros romances, encontrará seu complemento em Os Velhos e os Moços [I vecchi e i giovani], escrito no mesmo período do ensaio sobre o humorismo. Embora a estruturação da obra possa levar a pensar num romance tipicamente oitocentista, a atitude em relação ao grotesco e à máscara presente na descrição dos personagens, que corresponde a uma necessidade de trazer à luz traços psicológicos e morais da personalidade humana, faz de Os Velhos e os Moços um precursor daquela tendência que, alguns anos mais tarde, levará o teatro italiano a superar a mera descrição realista.

Mais do que esse romance, é Cadernos de Serafino Gubbio Operador que para Bosi representa “o verdadeiro e imediato prefácio do teatro, o drama in nuce dos personagens que formarão a mais vistosa encarnação dos problemas pirandellianos e, em certo sentido, daquele fenômeno cultural que se pode chamar “pirandellismo”.

O operador, espectador do comportamento social alheio, cuja vaidade denuncia, é herdeiro direto de Matias Pascal e de Dom Cosme Laurentano de Os Velhos e os Moços. É de sua observação que nasce o humorismo, de sua perspectiva absoluta, que se torna possível graças à forma de diário do romance. O caráter de monólogo da obra, porém, não leva Bosi a aproximar Pirandello de Joyce (“fluxo de consciência”) ou de Proust (conteúdos tirados da memória) mas antes do Leopardi de Opúsculos Morais, enquanto o afasta dos futuristas na medida em que Serafino Gubbio despreza a civilização mecânica que eles exaltavam.

No terceiro momento também, que vai até a conclusão de Uno, nessuno e centomila, o tema principal é o dissídio entre o que cada um acredita ser para si mesmo e como aparece aos olhos dos outros. Mas Vitangelo Moscardo não é mais uma personagem que se vê viver. Já é “o homem diante do espelho: aquele homem em busca de sua verdadeira imagem, ao mesmo tempo esperançoso e desesperançado de achá-la, além de todo fingimento, de toda automistificação”.

Na última fase de seu itinerário narrativo, animado por um novo sentimento da realidade, Pirandello, tendo se livrado do “pesadelo relativista”, assume seu caráter lírico, já revelado em Uno, nessuno e centomila. Nos dramas, nas novelas e em Adamo ed Eva, romance ideado mas não escrito, a alma pirandelliana liberta-se do passado, da história, perde-se na natureza e foge para outra realidade, o mundo dos sonhos, dos desejos inconscientes.

Embora este último momento da prosa de Pirandello coincida cronologicamente com o Surrealismo, Bosi tem muitas reservas quanto a uma aproximação apressada, pois o autor siciliano estaria sempre em busca de uma racionalidade mesmo no irracionalismo.

Está baseada também na narrativa pirandelliana a dissertação em que Sérgio Mauro propõe um estudo comparado entre Pirandello e Machado de Assis, irmanados por um pessimismo histórico que em ambos se transformará em pessimismo natural.

Marta Abba e Luigi Pirandello
Pirandello e Marta Abba

Segundo o autor, nos dois escritores esse pessimismo deriva da decepção em relação à sociedade na qual estavam inseridos. Se, em Pirandello, a decepção se originava da traição, para a sua geração, da esperança depositada nos ideais que haviam levado à unificação da Itália, em Machado de Assis nascia da nostalgia por um passado “nobre”, isto é, por aqueles valores morais e culturais que haviam caracterizado a sociedade brasileira até o fim do II Império e que, com o advento da República, haviam sido substituídos pela frivolidade e pela ignorância da burguesia ascendente.

Ao analisar O Falecido Matias Pascal e Memórias Póstumas de Brás Cubas, Mauro mostra como a morte (civil ou natural) permite aos dois narradores – o primeiro, “fora da vida”; o segundo, defunto – estar em condições especiais para poder fazer sua crítica à sociedade. No romance de Pirandello, os acontecimentos, apresentados em chave grotesca, são narrados em tom caricatural por um narrador humorista e levam àquele “sentimento do contrário” eivado de piedade pelo destino dos homens, incapazes de se subtraírem à prisão das formas. No de  Machado de Assis, ao contrário, o narrador cínico se mantém afastado dos fatos que narra com sutil ironia, quase com sarcasmo, não experimenta nenhum sentimento de piedade, zomba do leitor.

O ver-se viver de Pirandello corresponde, em Machado de Assis, à condenação a viver que a Natureza impõe ao homem, o que o leva a desenvolver um humor no qual a ironia de Sterne se mistura com o pessimismo de Schopenhauer ou do Leopardi do Zibaldone di pensieri.

*****

Esta breve resenha sobre a recepção crítica de Pirandello no Brasil não seria completa se nos limitássemos às edições brasileiras de suas obras. Embora haja grandes hiatos entre as traduções de novelas e romances, não devemos esquecer que Pirandello, muitas vezes, era lido diretamente em italiano, em francês ou em espanhol, como demonstram Candido Motta Filho que, no prefácio de 1925, já se refere a O Falecido Matias Pascal e a Seis Personagens à Procura de um Autor, e Tristão de Ataíde, que, no ensaio de 1928, define esta última como “um momento capital no teatro de todos os tempos e de todos os povos”.

A falta de traduções não impediu, sobretudo entre os anos 20 e 40, o público interessado de penetrar no universo pirandelliano, o que permite desmentir, em parte, a afirmação de Oscar Mendes quanto a uma presença marginal do escritor no Brasil. Se é verdade que, até o início da década de 40, as traduções de Pirandello se resumiam às Novelas Escolhidas (1925, 1932) e a O Falecido Matias Pascal (1933, 1941), por outro lado não podemos esquecer o interesse que o dramaturgo desperta de 1924 em diante.

Nesse sentido, é muito importante lembrar que a primeira montagem brasileira de Pirandello foi de uma companhia como a de Jaime Costa, especializada em vaudeville e em comédias de costumes. Embora seja provável que Costa não tivesse alcançado plenamente o significado da proposta pirandelliana, encenar o autor italiano fora, porém, “obra de coragem e de ambição artística” , num momento em que o teatro local não havia sido tomado por aquele mesmo desejo de renovação que começava a caracterizar a literatura e as artes visuais. O próprio autor teve a oportunidade de assistir a esta apresentação no Rio de Janeiro, em 1927, quando de sua turnê com a Compagnia Del Teatro d’Arte di Roma, sendo, na ocasião, homenageado pela Academia Brasileira de Letras (15 de setembro).

Se Pirandello possibilitou a um encenador popular como Jaime Costa uma abertura para peças de maior qualidade, permitiu também a Antônio de Alcântara Machado se aproximar das vanguardas e rever sua visão de teatro vazada nos moldes do teatro tradicional francês.

De vislumbre de novas possibilidades para a arte teatral no início da década de 20, Pirandello passa a ser, entre os anos 40 e 50, um elemento determinante na elaboração de uma nova estética. Para confirmar isso basta lembrar as montagens de Seis Personagens à Procura de um Autor, Assim É (se lhes Parece) [Così è (se vi pare)] e Vestir os Nus, realizadas pelo Teatro Brasileiro de Comédia, o qual estava renovando o conceito de teatro, graças à escolha de um repertório nacional e internacional qualificado, à presença de novos diretores e cenógrafos (entre os quais os italianos Adolfo Celi, Luciano Salce, Ruggero Jacobbi e Aldo Calvo), a um melhor preparo dos intérpretes.

Pirandello, no entanto, não é primordial só para o Teatro Brasileiro de Comédia pela sólida carpintaria teatral de suas peças. Serve também para que o Teatro de Arena, em oposição à “estética burguesa” do TBC, encontre o caminho para um espetáculo mais popular, apresentando, em meados da década de 50, O Prazer da Honestidade [Il piacere dell’onestà] e Não se Sabe Como [Non si sa come].

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Nos anos seguintes, a presença de Pirandello se enfraquece, mas volta sempre em momentos significativos para a cultura brasileira, como, por exemplo, recentemente, na peça Encontrar-se [Trovarsi], na qual o teatro volta a afirmar-se como empenho intelectual num momento em que os palcos brasileiros são tomados pelas comédias ligeiras; e na montagem de 1992-1993 de O Homem da Flor na Boca [L’uomo dal fiore in bocca], quando se parte do texto pirandelliano para representar um dos grandes dramas contemporâneos, o da AIDS.

A atualidade de Pirandello, que estes últimos espetáculos parecem afirmar, não deve porém deixar em segundo plano o conhecimento ainda hoje fragmentário de sua obra e a existência de uma fortuna crítica que ,exceto em alguns casos, quase nunca saiu do estrito âmbito do pirandellismo e, portanto, não se demonstrou capaz de trazer contribuições significativas para a análise de sua poética.

Nesse sentido, a última edição de Seis Personagens à Procura de um Autor junto com Esta Noite se Representa de Improviso e Cada Um a Seu Modo, precedida de O Humorismo [L’umorismo], representa um passo importante em direção a uma retomada dos estudos sobre Pirandello no Brasil.

Partindo de uma sugestão de Sábato Magaldi em O Cenário no Avesso (Gide e Pirandello), J. Guinsburg reuniu três das peças mais significativas do teatro pirandelliano bem como o ensaio escrito em 1907-1908 e novamente publicado em 1920, em virtude do vínculo que pode ser estabelecido entre esses vários textos. Se nas peças Pirandello reflete sobre a arte teatral, sondando sobretudo o estatuto da persona, em O Humorismo postula aquele “sentimento do contrário” que anima suas personagens.

Diante dessa nova proposta de reflexão sobre a arte pirandelliana, explicitada também nos ensaios que abrem o volume Pirandello: Do Teatro no Teatro (1999), não deixa de causar uma certa curiosidade a anunciada adaptação de Assim É (se lhes Parece) para um dos episódios de Você Decide da Rede Globo. É mais uma tentativa de apresentar Pirandello ao povo, como pretendia Prina em 1956? Num programa em que o público é chamado a escolher categoricamente entre duas alternativas, qual será o espaço para a perplexidade, a contradição, a cisão dos sentimentos pirandellianos?


*Trecho retirado do livro Pirandello: Do Teatro no Teatro (Organizado por J. Guinsburg)

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